segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

O Natal e a exploração da fé do povo


Jaqueline Lima Santos

Remetente: Aisha, Viela da Esperança, nº 1, casa 7, Favela da Fé, São Paulo – SP. Destinatário: Papai Noel, Pólo Norte.

Aisha todos os anos ficava horas com um pedaço de papel na mão tentando organizar tudo aquilo que desejava para o Natal que estaria por chegar e escrevia sua carta: Papai Noel são tantos os meus desejos, eu gostaria que nesse Natal minha família pudesse fazer uma ceia como aquela que eu vi na novela das oito: Chester, Chocotone, Frutas, refrigerante e bebidas para os mais velhos. Sei que na minha casa não tem chaminé e deve ser por isso que você não veio nos outros anos mas eu pedi para a minha mãe fazer um buraco no telhado que é para você colocar a nossa ceia, ela disse que você não existe, mas eu continuo acreditando porque te vejo sempre na televisão. Papai Noel, eu iria dizer tchau, mas como você não veio nos outros anos e neste eu vou ter um buraquinho no meu telhado, gostaria que você trouxesse aquela Barbie que eu vi no programa da Rainha dos Baixinhos, e aquela Ceci cor de rosa do comercial das Casas Bahia. Se puder traz também alguns blocos pra construir a minha casa, eu um dia quero ter um quarto só meu, cor de rosa e cheio de brinquedos. Morar em casa de madeira é tão ruim. Obrigado Papai Noel por ler a minha cartinha.

Aisha vai até a caixinha amarelinha dos correios e deposita o seu papel dobrado no meio, volta para casa esperançosa, suspira e diz: esse ano ele vem, eu vou ter um buraco no telhado, tomara que não chova. Assim como Aisha milhares de crianças escrevem para o Papai Noel todos os anos, e essas caixinhas amarelinhas ficam abarrotadas de cartinhas para o Polo Norte.

Ao anoitecer Aisha vai para a igreja com a sua mãe e quando termina o culto ela recebe algo chamado “envelope dos sonhos”, onde ela pode escrever todos os seus sonhos para que se realizem no próximo ano. O espaço era de uma folha, Aisha pega uma caneta e escreve bem apertadinho para que caiba tudo, e não lhe falte nada a ser realizado no próximo ano: Eu gostaria de morar em uma casa de blocos, que a minha mãe tivesse um carro, poder tomar o café da manhã da Rainha dos Baixinhos todos os dias, poder ir a escola de transporte escolar, ter um tênis cor de rosa e um uniforme para cada dia e não ter mais que calçar as meias molhadas. Agora que eu descrevi as coisas principais, meu Deus, por favor, eu sei que já pedi coisas de mais só que eu tenho muitos desejos, gostaria de comprar uma bicicleta Ceci cor de Rosa, uma boneca Barbie original porque as da feira quebram rápido, e poder ir a Disney um dia, pois eu vejo na televisão e parece muito legal. Se tudo isso for difícil só para você pessa que o Papai Noel venha este ano por favor!

O Natal se aproximava, faltava uma semana, e Aisha vira para sua mãe e diz: Você não vai fazer o buraco no telhado? Se você não fizer o Papai Noel não vai vir de novo mamãe! A mãe de Aisha pensa que se ela fizer o buraco no telhado depois pode não ter dinheiro para arrumar, mas ao mesmo tempo lembra da sua infância e de como o realismo de sua mãe foi duro diante dos seus sonhos. A avó de Aisha trabalhava pegando lixo nas ruas e não conseguia visualizar mais nada na vida além da necessidade de colocar comida dentro de casa, o dinheiro era tão pouco que ela nem se permitia sonhar, o sonho era a mistura quando tinha. A mãe de Aisha percebeu que era necessário deixar sua filha sonhar, mas com os pés nos chão, para que tudo não pareça tão cruel como foi na infância que ela teve, por isso responde: Vou fazer o buraco ainda hoje minha filha. Ao mesmo tempo essa mãe pensava em como fazer para dar um presente para a sua filha.

No outro dia ao ir trabalhar a mãe de Aisha que era costureira pensava muito no que iria colocar naquele buraco do telhado que acabará de fazer para a sua filha. A noite anterior foi mais fria por causa do buraco no telhado que esperava o Papai Noel. Ao vasculhar o resto de suas costuras a mãe e Aisha encontra resto de linha vermelha e branca, lã preta, espumas e um grande pedaço de pano preto, rosa e vermelho. Com esse material resolveu fazer uma boneca e ficou trabalhando o resto da semana depois do expediente para terminar o presente de sua filha. Enfim, a boneca ficou lindaaaa.

A mãe de Aisha foi até uma papelaria, comprou papel celofane e embrulhou o presente. Olhava para a boneca e via a sua filha, pretinha pretinha. Nem imaginava o que sua filha tinha pedido ao Papai Noel, mas sabia que a mesma tinha a mente aguçada e se preocupava com as ilusões que a mesma criava diante da televisão, mesmo assim não podava, pois ela como mãe também alimentava sonhos e ilusões desde a sua infância.

Na noite de véspera de natal a mãe de Aisha colocou a boneca embrulhada no buraco do telhado. Aisha depois de jantar com a família frango e arroz foi até o buraco e gritou: Não disse mamãe, ele veio! Era só fazer o buraco mesmo.

Aisha pega o presente e pensa: eu pedi tantas coisas, a minha ceia de natal foi um pouco melhor este ano e pelo menos ele veio e trouxe um dos presentes. Ao abrir o embrulho logo faz uma cara de frustração, era uma boneca, mas nada tinha a ver com a Barbie, não tinha os olhos azuis, o cabelo claro, a pele clara, não se parecia com a rainha dos baixinhos e com as pakitas, e até aquele momento não era bonita aos olhos de Aisha. Foi uma noite muito triste e sua mãe resolveu conversar sério com ela: Filha, a boneca foi feita por mim com muito amor, o Papai Noel trouxe aquilo que eu tinha condições de te dar, e se ele existe, ele sou eu, sua mãe que trabalha para tentar fazer o melhor para você, sua boneca é linda assim como você, olhe no espelho agora e depois olhe para ela, ela tem tudo a ver com você que é a minha princesa linda. Aisha, embora aliviada com o aconchego de sua mãe, continuou frustrada porque as suas vontades não foram embora e ela continuou com seus desejos. Escutar de sua mãe que a boneca era linda assim como ela era foi muito importante naquele momento, momento que ela nunca esqueceu.

No dia 25 de dezembro pela manhã Aisha acorda com uma voz auta no quintal com mais de 10 casas chamando o seu nome, era uma homem gordo, de barba branca e vestido de vermelho: Ebâ, é o Papai Noel! E de um caminhão que lhe acompanhava descia muitas cestas básicas, a Ceci cor de rosa, várias Barbies e muitos briquedos e roupas. Aisha dizia: Eu estou sonhando! Sua mãe ficou sem reação. Foi um dia maravilhoso, mas depois que o Papai Noel foi embora a vida continuou...Aisha passou até na televisão e despertou esperança em muitas outras crianças do seu quintal.

O que aconteceu naquele dia foi que um dos programas de televisão desses que passam no domingo a tarde resolveu colher algumas daquelas cartinhas que eram colocadas nas caixinhas dos correios e escolheram alguma crianças pobrezinhas para através da miséria do povo elevar o seu IBOPE. Aisha naquele momento não conseguiu sentir mais nada do que estar feliz, estava ganhando muito presentes e conhecia de alguma forma o Papai Noel, ele foi até a sua casa. O problema estava em como a televisão através de sua história individual estava criando mecanismos de explorar a fé do povo, pois assim como aconteceu com ela milhares de crianças em todo o Brasil passaram a esperar o Papai Noel chegar com o caminhão baú cheio de comidas e brinquedos, “se aconteceu com a Aisha porque não pode acontecer comigo?” E a vida continua, difícil, desafiadora, injusta em um mundo excludente onde não se tem oportunidades para todo mundo e onde utiliza-se da miséria do povo para gerar lucros e status social.

Nessa época do ano o “espirito natalino” deixa todo mundo solidário, todos querem fazer o que não fizeram o ano inteiro e oportunistas é o que não falta para explorar a fé do povo. Esse é um dos momentos mais contraditórios do ano, e se todo mundo se torna solidário as dores, aos problemas e necessidades do “outro”, ninguém compartilha essas dores, sonhos e desejos cotidianamente, e ninguém abre os cofres para dividir sua riqueza com aqueles que sonham com tudo aquilo que nesse mundo só pode ser feito com dinheiro.

Mas como a solidariedade não abre os cofres, a fúria ocasionada pelos desejos construídos pelo mercado os arrombam no resto do ano, afinal a vida continua, e a necessidade de “TER” continua sendo alimentada mesmo depois do natal.

Aisha só descobriu quando adulta que o fato mais importante que viveu naquele Natal foi a compreensão de sua mãe em não fazê-la tornar sonhos sinônimo de frustração, pois há sonhos que podem ser realizados e ela ainda teria muito o que sonhar em sua vida, e se desacreditasse de todos porque quando criança não alcançou alguns deles talvez futuramente nem tivesse a iniciativa de tentar.

A boneca preta é o presente mais importante da sua vida, pois a história com a boneca fez sua mãe lhe dizer pela primeira vez o quanto era linda, e lhe fez sentir o quanto sua mãe a amava. O recado que Aisha deixa nessa Natal é o seguinte: A vida é difícil, mas não podemos deixar de sonhar, pois os sonhos alimentam a nossa coragem de tentar, e se tentarmos podemos conseguir, talvez não, mas toda tentativa serve como aprendizado. Só não temos a possibilidade de conseguir se não tentarmos, por isso ao colocar os pés de qualquer criança no chão para entender melhor o que é o mundo não arranque de maneira bruta a sua maneira de sonhar.

Chegou o Natal, Papai Noel vai trazer presente? Aquelas caixinhas amarelinhas do correio devem estar cheias de cartinhas escritas por crianças de tudo quanto é canto esperançosas para a realização de seus desejos.

Cuti deu o recado “Se o papai noel não trouxer boneca preta neste Natal, meta-lhe o pé no saco”.

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